Espelhos que Mentem com Classe

Fragmento Dramático – “Espelhos que Mentem com Classe”

Localização no Grimório: Volume II – Entre o Delírio e o Delírio (Anexo Intermediário)
(Selo: máscara partida com um olho interno sangrando)


— Ora, veja só quem quer saber quem é.

Você olha pro teto branco e pergunta se ainda é você mesmo,
como se a existência fosse um contrato assinado com firma reconhecida.

Você espera um reflexo honesto, como se os espelhos não estivessem embriagados.
Como se as palavras que te constroem não viessem de bocas que mal sabem quem são elas próprias.

— Ah, mas eu penso, logo existo! — grita Descartes de dentro do caixão.

Você acredita nisso? Acredita mesmo que pensamento é prova?

Já pensou besteira hoje? Então era verdade?
Já pensou em morrer? Então era destino?

— A identidade é interna! — você afirma, como quem defende o último cigarro numa cela trancada.
Mas não vê que cada vírgula sua foi ensaiada por séculos de psico-coletividade.
Você se comporta como esperam que se comporte,
fala como o algoritmo permite,
ama com medo,
odeia com filtros.

— Mas… e se ninguém me visse?
Se não houvesse olhos, aplausos, punições ou curtidas?

Você dançaria como realmente dança ou como acha que deveria dançar?
Você falaria como sente ou como foi treinado a se expressar sem parecer louco?

Talvez, meu bem, você seja real.
Mas só no intervalo entre o julgamento alheio e a sua própria mentira.

É ali, naquele segundo de silêncio sujo,
onde nem você nem os outros sabem o que estão vendo…
que talvez você seja, de fato,
você.

Mas claro — tudo isso pode ser só paranoia com estética.


Parte II – Reflexos Espancados

…Mas claro — tudo isso pode ser só paranoia com estética.

Ou talvez, uma estética com paranoia.
Quem sabe?

Talvez você seja mesmo bom. Um bom menino.
Um herdeiro da moralzinha com selo Kant, rótulo Agostinho, validade Nietzsche.

Você não rouba, não mata, recicla o lixo, paga boletos em dia,
e no fim do mês — se masturba olhando para o teto como quem questiona o sentido da vida,
mas goza mesmo assim.

“Sou 80% eu mesmo quando ninguém vê”, você diz.
Bravo. Uma média acima da humanidade.
Um C+ ético, um herói silencioso com segredinhos sob a língua e pecado no travesseiro.

Mas e os outros 20%?
Os que mastigam as unhas do que você não diz?
Os que só acordam quando a porta está trancada e a luz azul do celular ilumina o que ninguém devia ver?

Quem são esses fantasmas?
E por que você os alimenta como pets domésticos de estimação e nojo?

Talvez porque no fundo…
Você saiba que a verdade inteira — aquela nua, crua, honesta —
não vale uma boa máscara bem feita.

Porque o espelho não reflete a alma.
Ele devolve o que você aprendeu a mostrar.

E se um dia ele quebrar?
Se a máscara cair na frente de quem você ama, ou odeia, ou finge que é neutro?

Vai rir? Vai chorar?
Vai se esconder?
Ou vai se olhar e dizer:

“Prazer, eu sou esse borrão.”

Silêncio.

O espelho agora está em pedaços.
E cada pedaço te mostra um você diferente.

Um deles pisca pra você.


🜃 [Fragmento apócrifo recuperado de um santuário perdido em memeternum.com]
Sem autor. Sem resposta. Sem garantia de que isso seja mesmo você.


— Soneca